Espaço Científico Cultural

CHAMBERLAND E O PARAÍSO PERDIDO

 

3a. Parte - O Paraíso Perdido
capítulos XCV CIII

Capítulo XCV

Isto lá é verdade. Mas se esse cara aprontar com a Glorinha, nós vamos dar um chega pra lá nele...

      ¾ Veja só os ciúmes do João! Vou grifar este trecho também. Mas ele o Rodrigo foram um pouco injustos com o José. O pulha não era tão mau assim.

      Sim, nesse dia eu estava relendo item por item a história do João e fazendo uma marca em todo trecho em que ele se referia a mim.

      Curioso, pensei. Como será que o padrinho soube de tantos detalhes assim? Parece tão real! É verdade, eles foram muito amigos; mas até do José eles conversavam?

De qualquer forma o pulha está fazendo bem para a Glorinha. Ela está mais linda do que nunca.

      Pobrezinho. Mal sabia ele que o José estava em outra. Mas se isso não é ciúmes eu não me chamo...

      ¾ Olá querida ¾ era a mamãe ¾ você está bem disposta hoje. Ontem você me deu um susto.

      ¾ Sim. Estou me divertindo com o que o padrinho escreveu. Ele e o João eram mais amigos do que eu pensava.

      ¾ Então vou preparar o café para você. Você estava dormindo tão pesado que eu não quis acordá-la para o jantar.

      ¾ Eu já andei lambiscando alguma coisa. Acordei às cinco horas.

      ¾ Então devia ter me chamado, Glorinha. Precisamos alimentar direitinho o meu neto. Espere aí que eu já volto.

¾ Bonita sua garota, patrãozinho. Quando é o casório?
¾ É apenas uma amiga, Onofre, mas que é bonita isso lá é.

      Foi assim mesmo que aconteceu. Como é que pode! Eu não me lembro da resposta do João, mas o que o Onofre disse sim. Foi uma voz bem forte, clara. Acho que foi a partir desse dia que comecei a observar João com outros olhos.

      Estava perdida em recordações quando mamãe chegou.

      ¾ Pronto: café com leite, suco de laranja, pão fresquinho, queijo, presunto, biscoito, mingau... é só escolher.

      ¾ Serviço cinco estrelas, ¾ falei.

      ¾ Sim, vocês merecem, ¾ emendou mamãe.

Capítulo XCVI

      ¾ RODRIGO, ¾ perguntei, ¾ o que você e o João falavam sobre o José?

      ¾ Não sei, ¾ Rodrigo enrubeceu enquanto falava, ¾ faz tanto tempo, mas parece que o João não gostava muito desse seu amigo.

      ¾ O José não é mais meu amigo, ¾ acrescentei.

      ¾ Vocês namoraram, não foi? Mas deixa pra lá, Glorinha. Isso foi em outros tempos. E depois, não deu em nada mesmo, ¾ concluiu Rodrigo.

      ¾ Sim, não deu em nada. E nem podia dar. Tanto eu como o José estávamos em outra. O José trabalhava em publicidade. Você sabia que ele queria me transformar em Miss São Paulo? ¾ falei toda orgulhosa.

      ¾ Não, não sabia mana! E você? Não entrou na dele?

      ¾ Eu fiquei com medo. Nunca vi o papai furioso,... mas ele não iria gostar nada disso.

      ¾ Também acho. Mas quer saber? O José não está com nada. Pra você eu só aceito de Miss Brasil pra cima.

Capítulo XCVII

      ¾ TERÇA-FEIRA eu aproveitei que estava melhor e me adiantei um pouco na leitura. As tonturas desapareceram. Achei muito engraçado o episódio da dona Maria. O padrinho parece sério, pensei, mas de vez em quando tem uma tiradas geniais. Achei engraçada também a forma como ele apresentava os seus amigos. Mas durante a leitura uma coisa não me saía da cabeça e voltei várias vezes a esse trecho:

¾ João, vais ganhar uma moto em agosto...

      A moto fora o começo... mas também o fim. E isso me deixou confusa. Não conseguia odiar o instrumento responsável pela morte de João. Tantas eram as boas recordações: Ora, querida, é pra já, seqüestre-me! E logo após, o que eu tanto ansiava: Eu te amo. Vamos! E foi a moto que me transportou ao paraíso. Graças a moto, hoje espero um filho de João. Como posso odiá-la? E no entanto foi por causa da moto...

      ¾ Estás chorando, mana? Podes te abrir com o teu Rodrigo... Já sei, estás pensando no João, não é?  Eu também não consigo esquecer.

      Contei ao Rodrigo o motivo da minha angústia. Rodrigo então foi maravilhoso. Fez-me bem ouvi-lo dizer:

      ¾ Bobagem, Glorinha. Não há porque culpar a moto. O João cumpriu sua missão e algum dia nós nos encontraremos com ele. E provavelmente será aqui na Terra mesmo. Desta vez não deu sorte, era a tua sina, e o João já era. Mas não é o fim do mundo. Agora mesmo ele deve estar te esperando para renascer; e de um lugar onde o tempo se esvai sem que se perceba. Amanhã mesmo vocês estarão juntos por uma vida inteira; e assim será por todos os séculos, até que atinjam a sublimação; e a partir de então, serão um só. E o Dois se transformará no Um.

      ¾ Bonito, Rodrigo, ¾ falei entusiasmada com o que ouvira, ¾ não conhecia seus pendores filosóficos. Nesse ano que passou não foi só o João que cresceu.

      ¾ Vamos mudar de assunto, Glorinha. Que tal a gente ir ao baile do Juventus hoje? É o encerramento do Carnaval.

      ¾ No meu estado não dá, Rodrigo. Você quer me ver desmaiar no salão?

      ¾ Ora, você fica sentada na mesa que eu e o Simão compramos. Vai te fazer bem e a mamãe pode ir junto.

      Nesse momento a mamãe nos chamou para o almoço.

      ¾ Duvido que ela concordasse. Mas não, Rodrigo, eu ainda não me sinto preparada para isso. De qualquer forma foi muito bom conversar com você. Aquele grilo passou.

Capítulo XCVIII

      ASSIM QUE ME sentei, mamãe se adiantou:

      ¾ Glorinha, eu fiz esta salada especialmente para você.

      ¾ Parece que está uma delícia, ¾ acrescentei.

      ¾ Sim, mas coma depois o bife. Não fique só no arroz com batatas, como ontem. Você... quer dizer, o nenem precisa de proteínas.

      ¾ E eu também, não é mamãe? Afinal, ele está me sugando todas.

      ¾ Você já pensou no nome dele? ¾ perguntou o Rodrigo.

      ¾ Se for menino será João, ¾ respondi.

      ¾ Hã... Hammmm... Rodrigo, me passe o arroz? ¾ era a mamãe tentando mudar de assunto.

      Vou ajudá-la, pensei.

      ¾ Papai, o senhor precisa ler o livro que o padrinho escreveu. Tem uma história de viagens às estrelas que o senhor vai gostar.

      ¾ E desde quando gosto de cosmonautas? ¾ perguntou sorrindo papai.

      ¾ Não é esse tipo de viagem, ¾ respondi também sorrindo, ¾ é uma espécie de meditação transcendental.

      ¾ E como eu vou ler, ¾ interessou-se papai, ¾ se você não larga aquelas folhas?

Capítulo XCIX

      SEXTA-FEIRA recebi a visita do padrinho. Conversamos bastante. Ao término não me contive e perguntei:

      ¾ Afinal, Lucíola existiu ou não?

      ¾ Na mente de João, sim. Mas para ser sincero, ele não conseguiu me convencer. De qualquer forma, eu quis prevení-la contra uma possível decepção. Quem sabe sirva...

      ¾ ... para me libertar, ¾ acrescentei, ¾ ou quem sabe me entristecer.

      ¾ Sim, vai entristecê-la, e este será o primeiro passo. Assim mesmo acho que você deve ler. Quis o destino que apenas eu conhecesse os últimos detalhes da vida de João, mas a história dele é mais sua do que minha.

      Ao final da tarde continuei a leitura e, entre um capítulo e outro, perdia-me em reflexões:

      Ainda bem que o padrinho veio; eu já estava tendo um comportamento infantil. Mas Glorinha, dissera, não foi o João quem me contou essa história de amor... Foi você mesma, esqueceu-se? Depois foi só interpretar o Soneto em Se Maior. É claro que depois disso o João disse alguma coisa, mas a essa altura, e dadas as circunstâncias, ele tinha mesmo é que se entregar. Sim, ainda me lembro: eu é que fui procurar o padrinho, temerosa, aflita, desesperada. Pensei que iria enlouquecer; e ele me devolveu a serenidade.

      Ao término de mais um capítulo, pensei:

      Puxa, que decepção para o João! Ele que idolatrava o Newton! Depois do padrinho, era de quem ele mais falava. Mas que descoberta teria sido essa? Ora, vou ter que continuar a leitura para saber. Vamos em frente.

Capítulo C

      O SIMÃO ENTROU na minha sala todo afobado:

      ¾ Doutor, aconteceu uma desgraça. O João... sofreu um acidente de moto, na Paes de Barros. E parece que está grave. O doutor Eurico nem quis fazer nada; levou-o direto para a Beneficência Portuguesa.

      ¾ Não pode ser, Simão! A esta hora ele costuma ficar estudando! A que horas foi?

      ¾ Parece que foi às 8 horas, por aí.

      ¾ Então vamos lá, Simão. Ainda bem que ele está na Beneficência. Eu conheço a maioria dos médicos de lá. Vamos no meu carro mesmo.

Capítulo CI

      NO PRONTO SOCORRO da Beneficência Portuguesa soubemos que João tinha sido encaminhado para a UTC, ou seja, Unidade de Tratamento de Choque.

      ¾ Então é grave mesmo, heim doutor? ¾ perguntou Simão preocupado, enquanto nos dirigíamos para a UTC.

      ¾ Nem sempre, Simão, ¾ respondi. ¾ Pode ser que ele esteja lá apenas em observação.

      Simão respirou mais aliviado e eu continuei:

      ¾ Pelo que eu soube no Pronto Socorro ele teve um traumatismo crâneo-encefálico e nunca se sabe o que pode acontecer nas primeiras horas. Provavelmente não o deixarão entrar. Mas eu entrarei e depois dou um toque.

      ¾ Ele vai permanecer muito tempo na UTC? ¾ perguntou Simão.

      ¾ Não sei. Mas é bom que seja na UTC. Eu fui um dos médicos fundadores e conheço toda a equipe.

      ¾ Ah, então podemos ficar sossegados ¾ brincou Simão, meio sem graça.

      E eu entrei na dele:

      ¾ Sim. Tirante eu, a equipe é excelente.

      E realmente era.

      Assim que chegamos à UTC me identifiquei e fui falar com o plantonista. Em outras circunstâncias a surpresa teria me deixado feliz: o plantonista era o Praxedes, um grande amigo. Conversamos bastante e inteirei-me do estado de João. O primeiro prognóstico não era muito favorável: estado grave. A equipe neuro-cirúrgica do hospital fora chamada e estava a caminho. Provavelmente o levariam para uma série de exames especializados e, quem sabe, para uma cirurgia.

      Dei uma olhadela rápida em João, o suficiente para constatar sua inconsciência, e saí. Lá fora cruzei com os pais de João. Eles nem notaram minha preocupação e me cumprimentaram rapidamente, sem perguntar nada. Aliás, já haviam conversado há pouco com o Praxedes.

      Que mais poderia fazer? Fui entáo para casa com o Simão e pouco conversamos.

      No dia seguinte, o cursinho. Todo mundo queria notícias e fui bastante solicitado. O primeiro a me interrogar foi o Roberto, que nos deu aulas de matemática no segundo semestre. O Roberto era um gozador, mas pela primeira vez o vi sério. A seguir a Simone, o Cazuza, o Ponce, etc.

Capítulo CII

      OS DIAS SE PASSARAM sem que houvesse melhoras. Mas a conversa que tive com o Ramires chegou a me animar. O Ramires é...

      ¾ Glorinha, querida, vamos jantar.

      ¾ Sim, mamãe, vamos. Vou deixar esse capítulo para mais tarde.

      ¾ Você não acha que já leu muito por hoje?

      ¾ É verdade. Então vou assistir à novela das oito e depois dormir.

      ¾ Pois eu acho que vou dormir depois do jantar, ¾ falou mamãe. ¾ A enxaqueca voltou.

      ¾ A senhora não falou com o padrinho sobre isso?

      ¾ Sabe que eu esqueci? Estava tão preocupada com a sua saúde que nem me lembrei. E justo hoje que eu saí, ele veio te visitar.

      ¾ Telefone para ele, mamãe.

      ¾ Não, eu não vou incomodá-lo com coisinhas pequenas. Nós já demos muito trabalho ao doutor. Vou tomar o remédio do doutor Eurico mesmo e depois eu vou para a cama.

Capítulo CIII

      NO DIA SEGUINTE, pela manhã...

      Vejamos onde foi que eu parei... Ah, sim foi aqui.

      Os dias se passaram sem que houvesse melhoras. Mas a conversa que tive com o Ramires chegou a me animar. O Ramires é outro amigo e colega da equipe da UTC. Convenceu-me de que a evolução do João era boa, que os sinais vitais estavam excelentes e que, pela idade, as chances de melhora eram grandes. Logo ele recobra a consciência, falou; e esta é também a opinião da equipe neuro-cirúrgica. Os exames nada acusaram de grave. Foi apenas uma contusão cerebral, concluiu.

      E, com efeito, assim aconteceu. Na véspera do exame da primeira fase da FUVEST, compareci ao hospital. Entrei na ala onde estava João e encontrei a Sílvia, uma auxiliar de enfermagem muito dedicada e que trabalhava na UTC desde os meus tempos de terapia intensiva.

      ¾ O João andou dizendo alguma coisa, doutor, ¾ falou a Sílvia. ¾ Parece que ele está querendo uma Bíblia, mas como é que ele vai ler com os olhos enfaixados? Acho que ele está delirando.

      ¾ Mestre, ¾ ouvi, ¾ é você?

      ¾ Sim, João, sou eu.

      ¾ Fez-se silêncio. Chamei-o e ele não respondeu. Lembrei-me do que a Sílvia falara e perguntei:

      ¾ João, você está querendo uma Bíblia?

      João balançou a cabeça positivamente.

      ¾ Está bem, João, eu trarei. Procure não falar nada, não se canse. Você vai ficar bom.

      Na saída cruzei com o Thales. Contei-lhe a novidade e ele confirmou que já estava esperando por isso. Recordamos os velhos tempos e, ao sair, perguntei-lhe pelo Arcon.

      ¾ Acabou de sair, ¾ falou. ¾ Eu acho que você chegou quando ele estava terminando de me passar o plantão. Vocês se desencontraram. Você entrou numa sala enquanto nós entrávamos em outra.

   * * * * *

 

Índice

Capítulo CIV

Home Page