A Estrutura da Luz e a Interação Luz-Matéria

Alberto Mesquita Filho     
setembro de 2017
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Conteúdo:

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    Introdução
  1. Tipos de Interação Luz-Matéria
  2. A interação do tipo I
    1. O campo refrator
    2. Analogias mecânicas
      1. Ação mecânica de uma superfície sobre a trajetória de uma bola, segundo Descartes
      2. Ação mecânica de campos conservativos sobre pequenos corpos segundo Newton
      3. A refração segundo o modelo mecânico ondulatório de Huygens
      4. Comentários sobre as discrepâncias entre os modelos
    3. Análise crítica dos modelos mecânicos apresentados no item 2.2Página 2
      1. Sobre o campo refrator
      2. Assuntos conflitantes relacionados à decomposição da luz
      3. Sobre a reflexão total
      4. Sobre a curvatura da luz produzida pelo Sol
  3. A interação do tipo II
    1. A inflexão dos raios de luz segundo Newton
    2. A repulsão dos raios de luz ao passarem próximos a objetos
    3. Página 3
    4. Considerações sobre o modelo mecânico ondulatório de Fresnel
    5. A experiência de Taylor e o modelo corpuscular
    6. Síntese do que foi até aqui apresentado
  4. A interação do tipo III
    1. Velocidade efetiva versus velocidade medida (ou média) da luz
      1. Propagação da luz segundo o modelo ondulatório
      2. Propagação da luz segundo o modelo corpuscular
    2. Sobre a interação III propriamente dita
    Página 4
  5. A interação do tipo IV
    1. Generalidades
    2. Tipos de Reflexão e Refração
    3. Em busca de um princípio a elucidar o binômio reflexão-transmissão
      1. Sobre a porosidade dos corpos
      2. Sobre a interação propriamente dita
      3. Reflexão e refração em lâminas transparentes delgadas
      4. Anéis de Newton
      5. Uma experiência de pensamento
      6. Fits de fácil reflexão ou de fácil refração
    4. Comentários relacionados a assuntos tratados no subitem 5.3
    5. A teoria dos fits e a estrutura dos raios de luz
    6. Sobre a Interação propriamente dita
    7. Escólio
    Página 5
  6. A interação do tipo V
    1. A dupla refração em cristais
    2. Sobre a força a provocar a dupla refração
    3. Sobre a dupla refração e a estrutura dos raios da luz corpuscular
    4. Analogias entre as teorias corpuscular e ondulatória
  7. A interação do tipo VI
    1. Generalidades
    2. Sobre a interação do tipo VI
    3. O Efeito Fotoelétrico
    4. Mais propriedades do “fóton clássico”
    5. Página 6
    6. Absorção e emissão de luz pelo átomo de hidrogênio
      1. O modelo de Bohr para o átomo de hidrogênio
      2. Primeiras críticas à teoria de Bohr
    7. Sobre a natureza do elétron
      1. O elétron clássico e a fórmula de Rydberg
      2. O elétron girante
      3. O elétron clássico e o eletromagnetismo
      Página 7
    8. Radiação Térmica
      1. Absortividade e/ou emissividade
      2. Radiação do corpo negro
  8. Considerações Finais
  9. Referências e observações

 

Introdução

No decorrer deste artigo irei considerar ora a luz corpuscular clássica, segundo Newton, ora a luz ondulatória clássica, segundo Huygens. Justificativas para essa conduta surgirão no transcorrer da leitura, podendo também ser encontradas em outros artigos deste site [1],[2],[3]. A prática de se considerar ora a luz corpuscular, ora a luz ondulatória, é adotada também por muitos dentre aqueles que estudam a temática sob o aspecto moderno (princípio da complementaridade e/ou eletrodinâmica quântica [4]), ainda que sob o pano de fundo da dualidade corpúsculo-onda da física quântica.

A luz corpuscular é parte inerente e, sob certos aspectos, indissociável da física newtoniana ainda que, vez ou outra, se preste a fomentar argumentos a contrariarem o modelo mecânico newtoniano de três leis. Ao lermos Newton percebemos haver, de fato, uma diferença nítida entre a sua física e o seu modelo mecânico de três leis [5]; e este último, sem dúvida alguma, mostra-se útil em condições bastante gerais.

A Óptica de Newton, a Dióptrica de Descartes e o Tratado da Luz de Huygens, não são livros fáceis de serem digeridos e por vários motivos, mas o principal relaciona-se ao fato de que entre as datas de suas publicações e a de nossa leitura mais de três séculos nos contemplam. Há problemas de linguagem, problemas de tradução, problemas de interpretação e problemas relacionados a experiências que fazemos hoje e não eram conhecidas na época. Há também, e principalmente, problemas relacionados aos paradigmas aceitos hoje como tais (ou seja, aceitos como verdades incontestáveis, ainda que alicerçados em um terreno amplamente pantanoso) e que são bem diferentes dos paradigmas aceitos há 300 ou mais anos. Alguns desses paradigmas devem ser assimilados para que se possa entender a Óptica destes ilustres personagens e caminharemos neste sentido estudando os principais tipos de interação luz-matéria hoje conhecidos, interpretando-os sob a visão newtoniana da luz e focalizando, quando necessário for, a lógica de Descartes bem como as controvérsias mais relevantes entre o modelo corpuscular newtoniano e o modelo ondulatório de Huygens.

1 - Tipos de Interação Luz-Matéria

Direi inicialmente que as interações luz-matéria, interpretadas sob uma visão newtoniana e adaptada aos dias atuais, podem ser classificadas em seis tipos principais [6], a serem aqui identificados aos algarismos romanos de I a VI. A tabela 1 fornece uma descrição sumária dessas interações exemplificando condições onde as mesmas se fazem presentes.

Tabela 1: Tipos de Interação Luz-Matéria

Tipo

Descrição

Exemplo

I

Curvatura dos raios de luz, aparentemente relacionada ao fenômeno atração.

Refração da luz observada em corpos transparentes

 II

Curvatura dos raios de luz, em geral relacionada ao fenômeno repulsão.

Formação de sombra de pequenos objetos

III

Interação ou "absorção" momentânea seguida de emissão praticamente instantânea da luz pela matéria.

Propagação da luz em meios transparentes e densos

IV

Reflexão e transmissão da luz.

Anéis de Newton

 V

Curvatura extraordinária dos raios de luz.

Refração extraordinária em cristais polarizadores

VI

Absorção e emissão da luz pela matéria.

Materiais opacos (absorção) e fontes de luz (emissão)

Os dois primeiros tipos de interação estão aparentemente relacionados a fenômenos do tipo atração ou repulsão e poderíamos dizer que dão-se à distância. Nestas condições, processar-se-iam graças à existência de campos [7] que, como veremos, não diferem em essência dos campos por nós sobejamente conhecidos [8] (gravitacional, elétrico e magnético). O que distingue estes dois tipos de campos, além de sua ação (atração ou repulsão) seria a maneira como são produzidos. Na interação tipo III, a luz e a matéria constitutiva do meio em que a luz viaja, quase chegam a se tocar, ou seja, exercem efeitos, uma sobre a outra, a pequeníssimas distâncias. É como se a luz se incorporasse momentaneamente à matéria do meio, sendo imediatamente (ou em um átimo de tempo) liberada pela mesma. A rigor, neste caso não existe absorção nem emissão, mas apenas uma interação momentânea e estrutural entre luz e matéria e onde os campos responsáveis pela estrutura, tanto da luz quanto da matéria, desempenham um papel fundamental. A interação tipo IV é um caso particular da anterior (III), ocorrendo na superfície de separação entre dois meios. A interação tipo V é um pouco mais complexa e deve-se a uma propriedade dos raios de luz e descrita por Newton como algo a denotar que estes teriam lados diferentes (em cima, embaixo, à direita e à esquerda, como mostra a figura abaixo).

figura 1
Figura 1: Os lados de um raio de luz.

A absorção e a emissão da luz pode também ocorrer em condições não tão efêmeras como aquelas observadas na interação tipo III, podendo-se pensar nelas como interações tipo VI. Pelo fato de estar assumindo uma natureza corpuscular para a luz, poderia, com maior propriedade, dizer que luz é matéria e, portanto, no caso absorção estaria havendo incorporação de matéria pela matéria, enquanto que no caso oposto estaria havendo emissão de matéria pela matéria. Lendo toda a obra de Newton, fica-nos a impressão de que ele assim pensava, embora raramente ele tenha expressado essa ideia de maneira nítida. Ao contrário, em sua Óptica ele não fala em absorção mas sim que os raios que não são refletidos nem transmitidos, são interceptados e suprimidos em si mesmos. Sob uma visão atual podemos pensar na interceptação como o equivalente à absorção, e na supressão como algo a significar que o raio de luz deixa de existir como tal, passando a fazer parte da matéria. Pode-se ainda subdividir a interação tipo VI em dois tipos, conforme ocorra na eletrosfera ou no núcleo dos átomos, ou ainda assumir este último caso como interação tipo VII.

Nos itens a seguir analisarei as ideias de Newton frente a um prisma atualizado, ou seja, adaptado a experiências efetuadas nos últimos trezentos anos.

2 - A interação do tipo I

2.1 O campo refrator

A interação tipo I seria a principal responsável pela refração da luz observada em corpos transparentes. A refração seria devida à curvatura dos raios em virtude da atração que os corpos materiais exercem sobre os corpúsculos de luz que passam muito próximo desses corpos. Não obstante, e para que possamos entender bem o processo, vamos antes analizar uma experiência efetuada por Newton e onde a interação do tipo I não está relacionada à refração e sim a uma inflexão atrativa dos raios de luz e provocada pela maioria dos corpos.

Segundo Newton haveria, na superfície dos corpos materiais, um campo [7] capaz de atrair a luz. A ideia da existência desse campo não surgiu de maneira especulativa ─ou seja, como uma hipótese inventada [9] e tendo como única finalidade adequar-se à explicação da refração pela teoria corpuscular─ mas sim como algo a se apoiar em observações experimentais. A experiência a justificar a ideia está relatada na Óptica de Newton [10] ─Newton constata e observa, de maneira mais refinada, um efeito que teria sido primeiramente observado e descrito por Grimaldi─ e a dinâmica do processo é discutida em detalhes nos Principia [11] (esta dinâmica será apresentada no item 2.2.2). O objeto escolhido por Newton foi uma lâmina de faca afiada e colocada de tal maneira a interceptar parcialmente um pequeno feixe de luz solar, como mostra a figura 2.

figura 2
Figura 2: Curvatura dos raios de luz (b, c, d) ao passarem próximos de um objeto (cinza). Em rosa está
representada a área onde existiria um possível campo capaz de atrair corpúsculos de luz. O raio e incide
sobre o objeto podendo ser refletido, absorvido ou transmitido (após refração) na dependência
da natureza do objeto considerado. O raio a sofre uma curvatura oposta a dos raios b, c e d
.

A sombra da faca observada no anteparo denota a existência de algumas franjas projetadas para dentro da sombra. Na figura 2 vemos três raios, b, c e d curvando-se para dentro da sombra. Um pequeno halo cor de rosa, em torno da lâmina, presta-se a representar onde estaria situado o campo de atração. Há também um raio e, a interceptar o objeto de estudo e que tanto pode ser refletido quanto absorvido ou ainda transmitido se houver refração, na dependência da natureza do objeto. No caso considerado trata-se de uma lâmina metálica, representada em cinza, logo não há refração. Na figura 2 vê-se também um raio a incidindo no anteparo no limite superior da sombra, e que será objeto de discussão quando formos estudar a interação de tipo II (relacionada ao fenômeno difração).

Poderíamos chamar este campo atrativo por campo refrator, haja vista ser o mesmo campo utilizado por Newton para explicar a refração da luz na transição entre meios transparentes (exemplo: vácuo/vidro ou ar/vidro). A refração seria devida à curvatura dos raios em virtude desta atração, como ilustrado na figura 4. A figura 3 ilustra pictoricamente como René Descartes descreveu o processo e corresponde ao que é observado macroscopicamente. A figura 4, por outro lado, demonstra como seria a mesma imagem em grande aumento e em concordância com a Óptica de Newton. Como afirma Newton, a refração ocorreria não no ponto de incidência, mas gradualmente e por uma inflexão contínua dos raios, realizada parcialmente no ar, antes dos raios tocarem o vidro, e parcialmente (se não estou enganado) no vidro, após eles terem penetrado no mesmo [12].

figura 3                  figura 4
Figura 3: Refração de um feixe de luz, como mostrado em livros didáticos.   Figura 4: Refração de um feixe de luz em grande aumento, segundo Newton.

Sempre que se tornar necessário enfatizar o fato de estarmos considerando a refração como um processo contínuo e a encurvar a trajetória do raio incidente na superfície de separação entre dois meios (1 e 2), chamaremos o raio resultante, aquele que readquire a trajetória retilínea ao trafegar pelo meio 2, como raio transmitido (figura 5). Do contrário, continuaremos a chamá-lo por raio refratado, como é costumeiramente aceito. De qualquer forma é interessante notar que o raio transmitido sofreu o processo de refração uma única vez, ao passo que o raio refletido sofreu o processo de encurvamento, devido ao campo refrator, duas vezes.

figura5
Figura 5: Reflexão ou transmissão (refração) de um feixe de luz em grande aumento.

2.2 Analogias mecânicas

Deixemos a luz de lado por ora. Vamos pensar em análogos macroscópicos e a respeitarem nossos conhecimentos de mecânica. Poderiam ser pequenas bolas a viajarem em meios hipotéticos (experiências de pensamento). Essas bolas poderiam entrar em movimento retilíneo e uniforme graças a impulsos como aquele promovido por uma raquete de tênis e a direção poderia ser modificada por:

  1. outro impulso (outra raquetada) recebido quando a bola está atravessando a superfície de separação entre dois meios e tal que esta superfície promova um aumento da componente da velocidade perpendicular à superfície;
  2. outro impulso, agora no sentido oposto ao anterior.
  3. um campo genérico capaz de acelerar ou retardar objetos que viajam pelo mesmo.

Os dois primeiros casos retratam experiências de pensamento efetuadas por Descartes e o terceiro caso relaciona-se a analogias mecânicas propostas por Newton. Posteriormente analisaremos a situação frente à concepção ondulatória (a retratar também uma analogia mecânica) e em concordância com o princípio de Huygens (item 2.2.3).

2.2.1 Ação mecânica de uma superfície sobre a trajetória de uma bola, segundo Descartes

Seja uma bola viajando em movimento retilíneo e uniforme entre dois pontos A e B de um meio homogêneo 1. Ao atingir a superfície de separação deste meio 1 com outro meio homogêneo 2 suponha que a ação da superfície sobre a bola seja equivalente à bola receber uma raquetada e tal que o impulso seja perpendicular a esta superfície. Se o impulso for no sentido do meio 1 para o meio 2, a trajetória da bola se aproximará da normal à superfície no ponto B, como mostra a figura 6 (a trajetória da bola está representada em vermelho). Caso contrário a trajetória se afastará desta normal (figura 7). Vamos então verificar como as trajetórias foram construídas nestas figuras (método adotado pela primeira vez por Descartes [13]).

Figura 6                  Figura 7
Figura 6: Conforme apresentado no texto, a bola sofreria um impulso em B dirigido na vertical e para baixo   Figura 7: Conforme apresentado no texto, a bola sofreria um impulso em B dirigido na vertical e para cima

No primeiro caso (figura 6) a velocidade v da bola aumenta após atravessar a superfície de separação entre os dois meios. Vamos admitir que o impulso foi tal que o módulo da velocidade foi dobrado: v2 = 2v1. Como o impulso foi na vertical, é de se esperar que o aumento da velocidade decorra apenas de sua componente vy e que vx permaneça constante. Vamos então construir a circunferência (verde na figura) com centro em B e passando por A.

Como v2 = 2v1, é de se esperar que a bola, após passar por B, atinja esta circunferência verde no meio 2 na metade do tempo que gastou no meio 1 (para ir de A até B). E como vx = constante, nesta metade de tempo a bola viaja, na direção x, a metade da distância AH ou CB que havia viajado quando estava no meio 1. Vamos então construir HF = ½ AH (figura 6) e traçar por F uma vertical que cruze a superfície de separação dos meios no ponto E e a circunferência no ponto I. A trajetória da bola terá então a direção do segmento BI. O ponto D está na figura a representar por onde passaria a bola caso a superfície de separação entre os meios não exercesse nenhum efeito sobre o movimento da bola.

No segundo caso (figura 7) supondo que o impulso (raquetada) tenha sido tal que v2 = ½ v1, verifica-se facilmente que a construção será semelhante, apenas com HF = 2 AH. Se o primeiro meio da figura 7 for o segundo meio da figura 6 e vice-versa, podemos juntar as figuras chegando-se a algo semelhante ao mostrado na figura 3.

Vamos agora analisar o comportamento dos ângulos i e r (i = ângulo de incidência e r = ângulo de refração) para o primeiro caso (figura 6). No triângulo ABH temos seni = AH/AB e no triângulo BGI temos senr = GI/BI. Como AB = BI (raios da circunferência) e AH = 2 GI (por construção), temos:

  equação Descartes (1)

A primeira igualdade está em acordo com o que poderíamos chamar lei de Snell-Descartes para o caso em que o índice de refração n do meio 2 em relação ao do meio 1 (n2/n1) é igual a 2. A segunda igualdade (seni/senr = v2/v1) será assunto de discussões futuras e não está em acordo com a lei de Snell-Descartes quando interpretada em termos das velocidades medidas para a luz nos meios transparentes. Quando muito podemos dizer que a expressão v2/v1 = n retrata o que poderíamos chamar "esperança" de Descartes para o caso da luz ser corpuscular. Há de se notar que o próprio Descartes notou uma ambiguidade com relação a refração de uma bola [objeto mecânico relacionado à obtenção da equação (1)] e a refração dos raios de luz, expressa com as seguintes palavras: "Mas, talvez, vós vos surpreendereis, ao realizar essas experiências, de encontrar que os raios da luz inclinam-se mais no ar do que na água, sobre as superfícies onde ocorre sua refração, [...] ao contrário de uma bola que se inclina mais na água do que no ar [13]. Para que não fique dúvida na interpretação desse texto de Descartes, pense nessa inclinação como o afastamento da normal no ponto de incidência. Desta forma, ao passar do ar para a água, a luz se comportaria como mostrado na figura 6, enquanto a bola se comportaria como mostrado na figura 7.

2.2.2 Ação mecânica de campos conservativos sobre pequenos corpos segundo Newton

Vamos agora pensar em possíveis campos genéricos agindo sobre pequenos corpos que os atravessam, com a finalidade de, posteriormente, aplicarmos os conhecimentos assim adquiridos ao estudo do campo refrator sobre os corpúsculos de luz. Seria o caso, por exemplo, de uma região do espaço de espessura h, limitada por dois planos A e B, e tal que qualquer corpo pequeno que por aí passe fique sujeito a uma força F perpendicular a esses planos limítrofes, e constante em toda a região (figura 8). Estes pequenos corpos ficarão sujeitos a acelerações a constantes durante todo o seu trajeto pela região considerada. A situação não difere em muito daquela observada com um corpo em queda livre (atração gravitacional, no caso) através de uma distância h não muito grande e tal que possamos considerar g constante.

figura 8
Figura 8: Região do espaço dotada de um campo (em rosa) capaz
de agir sobre pequenos corpos como descrito no texto.

Seja v1 o módulo da velocidade inicial ou de entrada do corpo na região considerada e seja i o ângulo que a trajetória (inicialmente retilínea) desse pequeno corpo forma com a perpendicular ao plano A no ponto de entrada, como mostra a figura 8. A trajetória na região do campo se mostrará encurvada pois a velocidade irá se modificando tanto em módulo quanto em direção enquanto o pequeno objeto estiver percorrendo a região onde existir o campo. Vamos tentar analisar como v2 e r se relacionam com v1 e i, sendo v2 o módulo da velocidade com que o pequeno corpo sai da região indicada e r o ângulo que a trajetória, a partir deste ponto, forma com a perpendicular ao plano B no ponto de saída. Esse problema é apresentado na Seção 14 do Livro I dos Principia e a solução será aqui obtida utilizando-se uma linguagem matemática modernizada, se bem que não difira em essência da resolução original.

O movimento pode ser decomposto em outros dois, segundo os eixos x e y. Como a aceleração é constante e sempre na direção de y, teremos um MRU segundo x e um MRUV segundo y. Sendo vx constante (MRU), temos:

  vx = v1 seni = v2 senr (2)

Portanto:

  equação03 (3)

Aplicando a equação v2 = vo2 + 2a(s – so) para o movimento segundo o eixo y (MRUV) e observando que h = - (yr - yi) temos:

  vy22 = v12cos2i - 2ah (4)

e como

  vx22 = v12sen2i (5)

e

  v22 = vx22 + vy22 (6)

temos:

  v22 = v12sen2i + v12cos2i - 2ah (7)

ou

  v22 = v12 - 2ah (8)

e

  equação09 (9)

em que n é um parâmetro a ser interpretado. Qualquer semelhança com o índice de refração é mera coincidência, haja vista que não estamos estudando a propagação de um raio de luz mas sim observando um comportamento mecânico-análogo.

Sendo a e h constantes do campo [a = f(F) e h = espessura do campo], segue-se que n é apenas função de v1 (ou do módulo da velocidade com que a partícula entrou no campo) e que v2 é apenas função de v1. Observar também que no caso representado na figura 8 a é negativo (a aceleração está dirigida no sentido oposto ao eixo positivo dos y), logo n > 1.

De (3) e (9) conclui-se que

  equação10 (10)

Podemos evoluir agora para um campo ainda genérico e um pouco mais complexo. Vamos admitir que a região do espaço ocupada pelo campo acima considerado possa ser dividida em camadas formadas pelos planos A, B, C, D, E..., como mostra a figura 9. Em cada uma dessas camadas a força é uniforme e orientada segundo o eixo y, mas de intensidade variável de camada para camada, sendo então F1, F2, ... Fn.

Figura 9
Figura 9: Trajetória de um pequeno objeto atravessando seqüencialmente quatro
campos f1, f2, f3 e f4 uniformes com características apresentadas no texto.

Nestas condições, e para cada camada, torna-se válida a solução encontrada anteriormente, qual seja:

  equação11 (11)

Multiplicando as expressões membro a membro e simplificando o resultado, lembrando que v21 = v12 ... e r1 = i2 ..., e fazendo v11 = v1 (velocidade de entrada no primeiro campo), v2n = v2, (velocidade de saída no último campo), i1 = i, rn = r e o produto n1n2...nn = n, chegamos na expressão

  equação12 (12)

que é a mesma expressão encontrada anteriormente para o campo uniforme em toda a extensão. Concluímos com Newton que se a distância entre os planos for diminuída e o número de camadas aumentado indefinidamente, a lei observada pela expressão 12 torna-se contínua. Consequentemente, a relação entre o seno do ângulo de incidência sobre o primeiro plano e o seno do ângulo de emergência no último plano continuará sendo dada por essa expressão 12.

A identidade entre a equação 1 do modelo de Descartes (onde n foi assumido igual a 2), e a equação 12, do modelo newtoniano, associada à demonstração da existência do campo refrator (experiência com a faca mostrada no item 2.1 e figura 2), sugere que o impulso imaginado por Descartes como uma raquetada poderia muito bem ter sido provocado por um campo delgado e situado ora na superfície dos corpos, ora envolvendo a superfície de separação entre os dois meios transparentes e da maneira ilustrada nas figuras 2 e 4. Notar, não obstante, que estamos frente a realidades diferentes. No caso newtoniano, v1 é a velocidade com que o corpúsculo entrou naquela fina película a que chamamos por campo refrator (figura 4) e v2 é a velocidade com que ele sai do campo refrator e, agora sim, entra no meio 2. Em outras palavras, v1 é a velocidade do corpúsculo no meio 1 e o que estamos chamando por ora de velocidade v2 é a velocidade de entrada deste corpúsculo no meio 2, e não podemos ainda garantir, no caso da luz, que esta será a velocidade com que o corpúsculo viajará no meio 2 (o que é assumido no caso da "esperança" de Descartes).

2.2.3 A refração segundo o modelo mecânico ondulatório de Huygens

A refração segundo Huygens está descrita em seu livro Tratado da Luz [14]. Por razões didáticas, modificarei ligeiramente a maneira de apresentar o tema mas os méritos devem ser todos atribuídos a Huygens.

Seja um feixe de luz viajando em um meio 1 e em direção à superfície de separação com outro meio 2, como mostra a figura 10. Vamos dividir este feixe em quatro feixes menores (o número poderia ser maior ou menor sem afetar as conclusões) e vamos representar na figura 11 os cinco raios de luz que delimitam esses quatro feixes. Sejam A e B os pontos em que os raios de luz 1 e 5 cruzam a superfície de separação entre os dois meios. Os demais raios (2, 3 e 4) cruzam esta superfície em pontos genericamente chamados por K.

Figura 10   Figura 11

Figura 10: Explicação no texto
 
Figura 11: Explicação no texto

No ponto A traçamos uma perpendicular AC aos raios de luz e outra perpendicular AE à superfície de separação entre os dois meios. Os pontos de AC correspondentes aos raios 2, 3 e 4 são chamados genericamente por H. No raio 1 determinamos o ponto D tal que DA = CB.

AC pode ser pensado como uma frente de onda que em um instante anterior (-Dt) ocupava uma posição representada na figura pelo ponto D (raio 1) e pelos demais pontos que acompanham D (pontos estes que não foram denominados e que correspondem aos raios 2 a 5). É fácil imaginar que em um instante posterior e igual a +Dt o ponto desta frente de onda AC que estava ocupando C terá se deslocado para a posição B, exatamente na superfície de separação entre os dois meios [pois DA = CB, por construção]. Os demais pontos da frente de onda já terão ultrapassado esta superfície (estarão além de A e dos genéricos K’s). O objetivo de nosso estudo será agora o de encontrar as posições desses pontos, determinando-se assim as trajetórias dos raios 1 a 4 e também do raio 5 a partir desse instante (+Dt).

Todos os pontos aqui batizados correspondem àqueles que são apresentados, com o mesmo nome, nas figuras do livro de Huygens.

Vamos supor agora que conhecemos a relação entre as velocidades da luz nos meios 1 e 2. Este é então o nosso ponto de partida na esperança de que, se a suposição estiver correta, consigamos obter uma trajetória para o feixe de luz compatível com o que é observado experimentalmente. Digamos então, e por facilidade de raciocínio e de esquematização, que a velocidade no meio 2 é a metade da velocidade no meio 1, ou seja, v2 = ½ v1.

Se não houvesse o meio 2, a frente de onda AC, que também pode ser chamada por AHHHC, viajaria toda ela na velocidade v1 e após o intervalo de tempo Dt ocuparia a posição GMMMB mostrada na figura 12. Não obstante o meio 2 existe e v2 = ½ v1, logo a frente de onda deve estar em outro local. Sabemos que o ponto A viajou todo esse intervalo de tempo no meio 2, logo deve ter percorrido uma distância igual à metade do segmento AG (que, por construção, é igual a DA). Podemos então traçar uma circunferência com centro em A e raio = ½ AG. O ponto do raio 1, a ser chamado por N, estará em algum lugar desta circunferência. Neste mesmo intervalo de tempo os pontos dos raios 2, 3 e 4 que ocupavam as posições H’s terão viajado a distância HK na velocidade v1 e a partir de K terão viajado uma distância igual à metade dos respectivos KM’s [pois estarão agora com a velocidade v2 = ½ v1]. Para cada um desses raios podemos então traçar a circunferência com centro no respectivo K e raio igual a ½ KM. E neste mesmo intervalo de tempo o ponto do raio 5 que ocupava a posição C, viaja até B na velocidade v1, logo o ponto B da nova posição da frente de onda já está determinado. Basta agora verificar a possibilidade de se traçar pelo ponto B uma tangente a todas essas circunferências e verificar que todas serão representadas pela mesma reta (se a figura for bem construída). A frente de onda estará então nesta reta e os pontos de tangência coincidirão com as posições dos raios 1 a 4, o que é mostrado na figura 13. Chamaremos de N o ponto correspondente ao raio 1. Basta agora traçar, a partir da superfície de separação entre os meios, os raios 1 a 5 correspondentes a estes pontos e o feixe de luz estará determinado no meio 2.

Figura 12   Figura 13

Figura 12: Explicação no texto
 
Figura 13: Explicação no texto

Vamos agora analisar o gráfico apresentado na figura 13. O ângulo de incidência i é o ângulo DAE e o ângulo de refração r é o ângulo NAF. Observar na figura que o ângulo DAE é igual ao ângulo BAC (AE é perpendicular a AB e DA é perpendicular a AC) e que o ângulo NAF é igual a ABN (AN é perpendicular a BN e AF é perpendicular a BA). Portanto i = DAE = BAC e r = NAF = ABN. Do triângulo retângulo ABC obtemos sen BAC = sen i = CB/AB e do triângulo retângulo ABN obtemos sen ABN = sen r = AN/AB. Dividindo sen i por sen r temos: sen i/sen r = CB/AN. Mas CB = v1.Dt e AN = v2.Dt. Como os Dt’s são os mesmos, chegamos à expressão:

  equação 13 (13)

Compare agora esta expressão (equação 13) com aquela obtida anteriormente através do método de Descartes para uma luz supostamente corpuscular (equação 1) e note que as velocidades estão invertidas.

O 2 da primeira identidade é um caso particular e válido para as condições consideradas nos dois casos. Experimentalmente o que se tem é sen i/sen r = n [Lei de Snell-Descartes] em que n é o índice de refração do meio 2 em relação ao meio 1 (n = n2/n1) e n1 e n2 são índices de refração do respectivo meio (1 ou 2) em relação ao vácuo. Esta relação é observada seja para a luz corpuscular, seja para a luz ondulatória. Há não obstante a discrepância relacionada às velocidades, ou seja, quando tentamos expandir a lei de Snell-Descartes no sentido que abranja também as velocidades. Segundo a «esperança» de Descartes, para o caso de a luz ser corpuscular (lembrar que Descartes não acreditava nesta hipótese) deveríamos ter n = v2/v1 e segundo a «esperança» de Huygens, para o caso de a luz ser ondulatória, deveríamos ter n = v1/v2. É interessante notar que apesar de trocados, os v’s têm o mesmo valor numérico para um mesmo n.

2. 2. 4 Comentários sobre as discrepâncias entre os modelos apresentados

Ouve-se, nos meios acadêmicos, que o veredicto com respeito à natureza corpuscular ou ondulatória para a luz, teria sido dado por Foucault em 1850. Foucault realmente demonstrou experimentalmente que a luz viaja mais lentamente na água do que no ar e de maneira a concordar com o que chamei acima por «esperança» de Huygens. As velocidades determinadas por Foucault realmente estavam na relação v1/v2 = n.

Sabe-se hoje que as coisas não são tão simples assim, quanto pareceram aos físicos da época de Foucault. Do contrário não precisaríamos nos preocupar com a chamada dualidade corpúsculo-onda bem como com inúmeros outros achados que chegaram a assombrar os precursores da física "moderna". Mas vamos por ora nos preocupar com o assunto sob o prisma da física clássica e, sob esse aspecto, firmo a seguinte pergunta: O que é que efetivamente foi medido por Foucault? Deixarei esta questão em aberto para que seja respondida quando formos estudar a interação do tipo III. Por ora vamos evoluir fazendo uma análise crítica dos modelos apresentados.

 

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