Estudo do Movimento segundo a
Metodologia Net-In Alberto Mesquita Filho Capítulo 6
6.1 Preliminares
Após cinco capítulos, falta pouco para que possamos nos considerar aptos a encarar o estudo do movimento sob o aspecto dinâmico. E o que falta relaciona-se a como prever determinados comportamentos, no decorrer do tempo, de objetos não isolados.
Não isolamento implica em interações, e o estudo da interação entre objetos implica no conhecimento do segundo princípio. Vamos então evoluir em busca deste segundo princípio. Há que se entender antes alguns aspectos básicos, bem como a matemática a eles associada.
6.2 Interações de Contato e Instantâneas
Quando dois discos (pucks) idênticos se chocam frontalmente sobre uma mesa aparelhada com colchão de ar, a experiência mostra que os movimentos observados antes e após a colisão assemelham-se àqueles ditados pela lei da inércia: são praticamente retilíneos e uniformes durante todo o processo, à exceção de um pequeníssimo intervalo de tempo. Intervalo este tão pequeno que poderia ser totalmente ignorado, a não ser pelo fato de delimitar duas etapas a serem estudadas separadamente (haja vista estarmos raciocinando apenas com o primeiro princípio). No estudo de cada uma dessas etapas tudo se passa como se cada um dos discos estivesse isolado do outro. O que vemos é algo do tipo observado na figura 6.1, (o vídeo é repetido duas vezes e na última exposição deixa rastros, simulando uma foto estroboscópica).
Content on this page requires a newer version of Adobe Flash Player.
Figura 6.1: Clique em Reproduzir
Esta é a chamada interação instantânea, a ocorrer em um intervalo de tempo Dtc (c de colisão) muito próximo de zero. Quaisquer outros efeitos de um dos discos sobre o outro, caso existam, são tão pequenos que podemos desprezá-los frente aos valores numéricos que conseguimos extrair da experiência. Matematicamente isto implicaria em uma descontinuidade; fisicamente isto implica em estarmos desconsiderando o intervalo Dtc (duração da colisão) e, em virtude disso, na necessidade de separação do estudo em duas etapas. Na figura 6.2 estão representados os gráficos das funções s=f(t) e v=f(t) para um dos discos.
Figura 6.2:s é não derivável em tc
e v é descontínua em tc.
As flechas que aparecem na figura 6.1 (final da exposição) mostram que após a colisão os discos viajam de maneira mais lenta e em sentido oposto ao primitivo. Como os movimentos são uniformes e o intervalo de tempo entre cada dois registros é sempre o mesmo, v pode ser representado pelos Ds's (deslocamentos na unidade de tempo). Ou seja, os comprimentos das flechas são proporcionais à velocidade. Observe, por ora, que vf (velocidade final, flecha branca) é menor do que vi (velocidade inicial, flecha preta) para os dois discos e apontam para lados opostos. A redução em tamanho poderia não ter acontecido (choque elástico), mas este é um assunto a ser comentado em outro capítulo.
A representação de v através de flechas se mostrará bastante conveniente em nosso estudo. Mais do que isso, estamos frente à ferramenta matemática que nos faltava e a permitir a caracterização de algumas das grandezas físicas como entidades vetoriais. Clique aqui para ler uma ligeira introdução aos vetores. Para se familiarizar com medidas angulares ou de módulos resolva o exercício 6.1 (exercício de aplicação).
Vejamos agora o caso de um choque não frontal entre dois discos idênticos, sendo que um deles está inicialmente em repouso. O que a experiência mostra está simulado no vídeo apresentado abaixo (figura 6.3). Os movimentos são retilíneos e uniformes, podendo-se portanto representar os vetores velocidade v como proporcionais aos vetores deslocamento Dr (para um mesmo Dt).
Content on this page requires a newer version of Adobe Flash Player.
Figura 6.3: Clique em Reproduzir.
Chama a atenção, neste caso, a conservação da soma vetorial das velocidades, antes (i) e após (f) a colisão:
v1i + v2i = v1f + v2f
eq. 6.1
onde o índice 1 refere-se à bola verde, e o índice 2 à vermelha. No caso anterior (figura 6.1) isto também ocorria, mas não chamava a atenção pois as somas igualavam-se a zero [v1i = -v2i e v1f = -v2f], tanto antes quanto após a colisão. A equação 6.1 também é observada quando os dois discos estão inicialmente em movimento (e, portanto, com v2i ≠ 0). Observe o vídeo correspondente clicando aqui.
Ao invés de representar o "antes" e o "após" a colisão de cada lado da equação, podemos expressar os termos relativos a cada um dos discos (1 e 2) em lados diferentes da equação. A equação 6.1 fica então:
v1f - v1i = - (v2f - v2i)
eq. 6.2
o que é o mesmo que:
Dv1 = - Dv2
eq. 6.3
A equação 6.3 expressa o fato de que a variação do vetor velocidade de um dos discos é igual e de sentido oposto à variação do vetor velocidade do outro disco. A experiência mostra que isto sempre ocorre quando os discos são idênticos, permitindo que se estenda esta conclusão para outros objetos também idênticos e a passarem por situações semelhantes.
A figura 6.4 retrata a equivalência entre as equações 6.1 e 6.2 (ou 6.3) no formato gráfico, para o caso do último vídeo observado.
Figura 6.4: Duas maneiras de expressar a mesma equação. (clique aqui para rever o vídeo)
6.3 Colisões instantâneas entre discos (pucks) não idênticos
Observa-se, no entanto, que os vetores Dv1 e Dv2 permanecem sempre paralelos, ainda que com módulos diferentes. Nota-se ainda que para cada par de discos, independentemente das velocidades iniciais, obtém-se sempre uma relação do tipo
Dv1 = - m12Dv2
eq. 6.4
sendo m12 uma constante a depender apenas do par de discos levados em consideração (no caso, os discos 1 e 2). Constate isto resolvendo os exercícios 6.3 e 6.4.
A expressão 6.4 pode então ser escrita como
v1f - v1i = - m12(v2f - v2i)
eq. 6.5
e, em termos de "antes" e "depois", a expressão correspondente à equação 6.1, agora para discos não idênticos, será:
v1i + m12v2i = v1f + m12v2f
eq. 6.6
Para m12= 1 as equações 6.5 e 6.6 se transformam naquelas vistas para objetos idênticos (respectivamente 6.2 e 6.1). As equações 6.4 e 6.6 são, por ora, as que nos interessam, por serem mais gerais [6.1 e 6.3 são casos particulares destas últimas].
6.4 Interações não Instantâneas
Instantaneidade implica em intervalo de tempo Dt muito pequeno. Tão pequeno que sua duração passa por irrelevante para a análise e compreensão de determinados fenômenos físicos. Isto não significa dizer que Dt seja igual a zero, mas sim desprezível quando comparado com os demais intervalos de tempo que estão sendo medidos no laboratório. Muitas vezes torna-se difícil ou até mesmo impraticável atribuir algum valor diferente de zero para esta instantaneidade. Não obstante, este zero é uma abstração do mesmo tipo daquela comentada no capítulo 3 (item 3.2) ao nos referirmos ao conceito partícula (partícula = corpo cujas dimensões e estrutura interna são irrelevantes em determinadas condições) [1].
Neste intervalo de tempo praticamente nulo, os discos se interagem fortemente e a única coisa que conseguimos registrar é o resultado do baque ou da colisão. Podemos então dizer que, de alguma forma, cada um dos discos impulsiona instantaneamente o outro, obrigando-o a modificar seu movimento e tendo, neste mesmo instante, o seu movimento modificado pelo impulso provocado pelo outro.
Existem casos em que a interação não é tão instantânea, podendo-se registrar este efeito. Isto acontece, por exemplo, com discos magnéticos. O vídeo apresentado a seguir (clique na figura 6.5) simula esta situação. À primeira vista parece não haver diferenças significativas entre esta colisão e aquela observada com discos plásticos, a não ser pelo fato de não se ouvir o som do baque. Não obstante pode-se sofisticar a técnica de visualização e de obtenção dos rastros [2], assim como aumentar a frequência do flash estroboscópico, obtendo-se um número maior de pontos representativos da trajetória dos discos. No caso da simulação optamos pela apresentação de um hipotético zoom seguido da reprodução com uma frequência maior no registro dos rastros.
Figura 6.5: Simulação de uma colisão
entre dois discos magnéticos. Para observar a simulação clique na figura
Aplicando o zoom, nota-se que os discos não se tocam e que o disco vermelho, inicialmente em repouso, começa a se movimentar um pouco antes de quase se tocar com o disco preto; este, por outro lado, começa a modificar a direção de seu movimento um pouco antes deste ponto de maior aproximação.
Neste caso m12 = 1, o que pode ser constatado observando-se que Dv1 = -Dv2. Isto está demonstrado na figura 6.6 construída no Paint [Ao resolver um exercício é importante verificar o valor de m12 logo no início, pois isto facilita os trabalhos subsequentes]. A imagem foi obtida do vídeo (recurso Alt+PrtScn) "antes" da aplicação do zoom e, portanto, utilizando argumentos já apresentados nos itens anteriores ("antes" de uma interação significativa e "depois" desta interação, quando os movimentos são praticamente inerciais).
Figura 6.6: Observação de queDv1 = - Dv2
Vamos agora analisar o trecho em que os discos estão interagindo de maneira mensurável, ou seja, a partir do momento em que notamos a movimentação do disco 2. A figura 6.7 presta-se a demonstrar que a soma vetorial v1m + m12v2m permanece constante a menos de discretíssimos desvios inerentes à imprecisão do método gráfico utilizado. Notar que neste caso: 1) m12= 1; 2) as velocidades vim são valores médios; 3) os intervalos de tempo foram considerados como unitários (o que implica em que Drivim); e 4) cada medida é efetuada, para os dois discos, nos mesmos instantes (1 a 5) ou intervalos de tempo.
Figura 6.7: Clique na figura para observar o vídeo correspondente
6.5 Generalização
Os resultados apresentados nos itens anteriores podem ser expandidos para interações entre outros objetos. Aliás, a história do estudo do movimento nos mostra que todos esses achados, que hoje podem ser reproduzidos nos laboratórios de maneira direta e sofisticada, na realidade foram obtidos a partir de uma análise bem mais complexa e através do estudo de movimentos naturais. A milenar astronomia desempenhou um papel relevante nesta direção e a embasar quase todos os nossos conhecimentos relativos ao movimento do ponto de vista do que hoje se chama física clássica. A partir do final do século XIX o estudo do microcosmo (partículas elementares) entrou em ação e muita coisa pôde ser acrescentada.
Os exercícios 6.5 e 6.6 apresentam movimentos de dois corpos a simularem comportamentos como ocorrem na natureza, ora traduzindo uma atração entre os corpos, ora uma repulsão. Resolva os exercícios e verifique a validade da equação
vm1 + m12vm2 = K= vetor constante
eq. 6.7
para os dois casos (corpos de massas diferentes e que se repelem ou se atraem).
Antes de chegarmos no segundo princípio, uma última generalização se faz necessária. O intervalo de tempo utilizado nos exemplos acima, poderia ter assumido um valor qualquer. Poderíamos pensar até mesmo em valores infinitesimais (Dt®0) e, neste caso, vm®v.
Para pequenos valores de Dt o método gráfico revela-se bastante impreciso mas, pelo menos em teoria, podemos aceitar a validade deste reducionismo como um caso limite. Pode-se ainda contornar esta dificuldade através de estudos analíticos mais sofisticados: obtenção da equação da trajetória y=f(x) [ou ry=f(rx)] e da função vetorial r=r(t) através de suas respectivas equações paramétricas: rx=f(t) e ry=f(t). Observar que para o estudo no plano a equação vetorial se traduz em uma duplicidade, pois r = r(t) = r[rx(t), ry(t)].
A função vetorial v
v = v(t) = [vx(t), vy(t)]
seria então obtida derivando as funções paramétricas de r em t: rx = rx(t) e ry = ry(t):
Observar que: Dr = D(rx, ry) = (Drx, Dry) e dr = d(rx, ry) = (drx, dry)
Vamos simplesmente aceitar a generalização da equação 6.7 para condições de instantaneidade, quando . A equação 6.7 fica então:
v1 + m12v2 = K
eq. 6.8
Esta é a expressão que utilizaremos para chegarmos ao enunciado do Segundo Princípio do estudo do movimento.
6.6 O Segundo Princípio da Mecânica
Em conformidade com o exposto nos itens 6.1 a 6.5 deste capítulo podemos enunciar o Segundo Princípio do estudo do movimento da seguinte maneira [3]:
Segundo Princípio: Sejam três partículas 1, 2 e 3. Para cada duas destas partículas isoladas do restante do universo e observadas a partir de referenciais inerciais, existe uma constante mij > 0 [i,j = 1, 2, 3] e um vetor constante Kij (independente do tempo) tais que suas velocidades vi e vj sejam dadas, em quaisquer instantes, por
partículas 1 e 2:
Þ
v1(t) + m12v2(t) = K12
partículas 2 e 3:
Þ
v2(t) + m23v3(t) = K23
partículas 3 e 1:
Þ
v3(t) + m31v1(t) = K31
sendo sempre válida a relação
m12m23m31 = 1.
mij depende apenas do par de partículas levado em consideração. Mantendo-se o par constante, mij não varia de uma experiência para outra.
Kij pode variar de uma experiência para outra, ainda que o par de partículas seja o mesmo. O valor de Kij depende também do referencial inercial que está sendo levado em consideração.
O segundo princípio é resultante de observações experimentais, a incluir a identidade
m12m23m31 = 1,
eq. 6.9
que é compatível com
eq. 6.10
haja vista que
sendo m1, m2 e m3 propriedades, respectivamente, das partículas 1, 2 e 3. A expressão 6.8 pode então ser escrita como
m1v1(t) + m2v2(t) = m1K12
ou então:
m1v1(t) + m2v2(t) = P12
eq. 6.11
A identidade a que estávamos nos referindo para os objetos estudados no item 6.2 (objetos idênticos) significava, a rigor, uma igualdade de suas propriedades m. Ou seja, m1 é uma propriedade do objeto 1 e m2 é uma propriedade do objeto 2. A essa propriedade chamaremos massa inercial. P12, por outro lado, recebe o nome de vetor momento linear do sistema constituído pelo conjunto dos objetos 1 e 2. P12 mantem-se constante em uma mesma experiência (observado o isolamento) mas pode variar de uma experiência para outra. Em virtude da constância de P12, o segundo princípio é também chamado Princípio da Conservação do Momento Linear. Tanto m quanto P12 serão objetos de estudo do próximo capítulo.
Para fazer os Exercícios do Capítulo 6 clique abaixo em Exercícios Para continuar lendo este artigo clique em Capítulo 7.
Vide a advertência no último parágrafo deste item (item 3.2, capítulo 3).
Não há necessidade em detalhar esta técnica, embora seja bastante simples. Sua descrição poderá ser encontrada em alguns livros didáticos, como por exemplo: EISBERG R.M e LERNER L.S, Física, Fundamentos e Aplicações, vol 1, Ed. McGraw-Hill do Brasil, São Paulo (tradução). 1982, p.177.
Com algumas modificações, esta é a maneira como o segundo princípio é apresentado no livro Classical Dynamics, a contemporary approach, de JOSÉ, Jorge V. e SALETAN, Eugene J.l. [Cambridge Univ.Press, 1998, p.7]